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Rayssa não bebe, não fuma, não faz sexo sem preservativo. “Sempre fez tudo certinho a vida inteira” e até teria se orgulhado disso, mas não teve tempo. Há 14 anos, quando tinha 23, teve o destino arrancado das próprias mãos e traçado pelo homem estranho que a estuprou – que, além das marcas psicológicas, deixou na companhia dela o vírus HIV. De 2003 para cá, a cabeleireira tem compartilhado com pessoas que vivem com o vírus ou têm aids a luta por saúde, assistência psicossocial e, principalmente, respeito. A tríade de direitos básicos foi, inclusive, reivindicada na manhã dessa quarta-feira (10), no bairro Jacarecanga, em um ato do Fórum do Movimento Social de Luta contra a Aids do Ceará, em homenagem aos mortos pela doença e protesto por melhores condições de tratamento no Estado.
As dezenas de cruzes pretas erguidas pelos participantes mostravam não só o luto, mas denúncias de alguns dos principais obstáculos enfrentados por quem tem o HIV circulando nas veias: “baixa autoestima, preconceito, ausência de pesquisas, estigma”. Além dessas, outra pauta prioritária do movimento é a reestruturação de espaços assistenciais como o Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA) e o Serviço de Assistência Especializada em HIV/Aids (SAE) do posto de saúde Carlos Ribeiro, no Jacarecanga, que atende cerca de dois mil pacientes, segundo a Secretaria Municipal de Saúde (SMS). “A concentração de todos os serviços em um lugar só prejudica o atendimento. Além disso, é preciso contratar mais profissionais”, alerta o coordenador do Fórum, Vando Oliveira.
Outra reivindicação do movimento, aponta Oliveira, é o aumento da quantidade de cestas básicas e Bilhetes Únicos ofertados pela Prefeitura de Fortaleza a pessoas de baixa renda que vivem com HIV/Aids, para facilitar o deslocamento às unidades de saúde. Atualmente, 120 cestas e 500 cartões são entregues mensalmente, carregados com 30 passagens, aos pacientes cadastrados na Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e Aids, número que, para o Fórum, deveria dobrar.
O coordenador da Área Técnica de IST/Aids e Hepatites Virais da SMS, Marcos Paiva, reconhece que “a epidemia do vírus em Fortaleza é crescente” e ressalta que, por isso, “o foco é a prevenção”. Atualmente, segundo ele, sete unidades de saúde da Capital disponibilizam atendimento a pessoas vivendo com o HIV ou com aids, às quais deve se somar uma policlínica integrada ao Hospital da Mulher, ofertando a cerca de dois mil pacientes “desde a testagem para detectar o HIV até o tratamento com médicos, psicólogos e medicamentos”. O prazo, diz o coordenador, não deve ultrapassar o segundo semestre deste ano.
Preconceito
Além da busca por melhorias na assistência de saúde pública, outra luta constante das pessoas vivendo com o vírus HIV é pelos direitos de existir e ser – negados tantas vezes a Rayssa Lorrany, 33. “Até as pessoas entenderem que não transmito o vírus ao abraçar ou beijar, é difícil. Já perdi dois empregos por discriminação. Em um deles, desmaiei de cansaço e, só por eu ser mulher trans, deduziram que eu era ‘aidética’ e me demitiram”, declara a cabeleireira, que tem acompanhamento psicológico.
A perda do respeito e do convívio social foi só mais uma diante da maior dor pela qual a dona de casa Margarida Verineide, 50, passou: a partida do marido, vítima de Aids e da resistência pelo tratamento. “Eu tentava convencer ele a se tratar, a ir ao médico, mas ele recusou, não consegui”, diz, com os olhos marejados pela impotência. A força de que precisa para lidar com o vírus que o marido transmitiu a ela, porém, só encontra em si mesma. “Quando resolvi falar com as minhas amigas, para poder me aceitar, elas se afastaram. Mas eu vivo bem, você tá vendo”, relata destacando a importância do tratamento adequado e constante.
Fonte: Diário do Nordeste