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Após uma série de pesquisas locais, nacionais e internacionais, a rede pública de saúde de Curitiba passou a oferecer, desde o início de março, uma nova estratégia de prevenção à contaminação pelo vírus da Aids: a chamada profilaxia pré-exposição, conhecida como PrEP. O método é baseado no uso de medicamentos antirretrovirais (ARV) e, quando usado corretamente, diminui em mais de 90% as chances de infecção.
O medicamento usado (Truvada) é distribuído gratuitamente no Centro de Orientação e Aconselhamento (COA) da Secretaria Municipal da Saúde (SMS). Para receber o tratamento, é preciso passar por uma avaliação e se encaixar em ao menos um dos grupos considerados chave: gays e outros homens que fazem sexo com homens (HSH), pessoas trans, profissionais do sexo e casais sorodiferentes (em que um dos integrantes vive com o HIV e o outro não).
Segundo o protocolo clínico da PrEP, elaborado pelo Ministério da Saúde, entre os brasileiros, em geral, a prevalência do HIV é de 0,4%. Nessas populações-chave, porém, os números sobem muito: a prevalência chega a “4,9% entre mulheres profissionais do sexo; 5,9% entre pessoas que usam drogas (exceto álcool e maconha); 10,5% entre gays e HSH; e 31,2% entre pessoas trans”.
Esses parâmetros são nacionais foram definidos com base no risco de infecção de acordo com as práticas sexuais. Em 2016, segundo o Ministério da Saúde, foram notificados 37,8 mil casos de infecção por HIV no Brasil, sendo, destes, 26,9 mil em homens. No mesmo período, de acordo com a SMS, foram notificados em Curitiba 689 casos – 551 entre homens e 138 entre mulheres. Clea Ribeiro, infectologista do Centro de Epidemiologia da Secretaria, explica que o sexo anal receptivo é a prática sexual que apresenta maior risco de contaminação, por isso a prevalência do vírus é muito mais alta em homens do que em mulheres.
No COA, a maioria das pessoas que procura a PrEP é de homens que fazem sexo com homens, mas nem todo mundo sai de lá com uma receita. “O procedimento é o mesmo para todo mundo que nos procura: a pessoa chega no centro e vai para a sessão de aconselhamento. O aconselhador vai ver qual a demanda e o que trouxe aquela pessoa até aqui. Ali é que vamos descobrir qual é a necessidade dela e qual o tratamento mais adequado”, diz a coordenadora do centro, Juliane Villela Santos. “A minha tentativa é analisar, dentro da prática sexual daquele indivíduo, como trabalhar em conjunto para diminuir o risco de infecção”.
O tratamento é simples, mas exige atenção e organização. Pessoas que estão usando a PrEP devem tomar diariamente um comprimido do Truvada e fazer um acompanhamento periódico no COA. É o caso de Nori*. Aos 55 anos de idade, ele é parceiro de outro homem há seis e utiliza o tratamento desde o início de 2016, quando participou do Projeto Combina – um estudo com o objetivo de avaliar os métodos preventivos do HIV, em especial aqueles baseados em ARV.
“Não tive problema algum. Eu me programei para tomar o medicamento em uma determinada hora e faço uso dele conforme o prescrito”, conta. Além disso, a cada três meses ele vai ao COA para as consultas de acompanhamento e a realização de exames preventivos – que monitoram tanto os efeitos do remédio quanto a infecção por outras doenças. É também nessa ocasião que ele recebe a dose necessária para os três meses seguintes. “Esse é o comprometimento: a cada 90 dias tenho que estar lá para que eles façam o acompanhamento do quadro”, explica.
“A utilização da PrEP é algo bastante importante, mas não acho que ela seja vista como um motivo para abandonar o preservativo”, opina. Para ele, a PrEP é uma ótima parceira da camisinha – prevenindo, assim, não o vírus HIV, mas também outras infecções sexualmente transmissíveis (ISTs).
Atenção de saúde abrangente
Os dados respaldam o depoimento de Nori. A equipe que coordena o projeto PrEP Brasil, que conta com pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Universidade de São Paulo (USP) e do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids da Secretaria da Saúde de São Paulo (CRT DST/Aids SP), publicou um artigo em fevereiro no respeitado periódico Lancet HIV detalhando os resultados de 48 semanas de acompanhamento de 375 HSH e mulheres transgênero em PrEP. A equipe descobriu que, após o início do tratamento, caiu o número médio de parceiros dos participantes e o número de relações sem o uso de camisinha se manteve estável.
“Fazer a pessoa pensar nisso [na sua rotina sexual] periodicamente, pensar nas vulnerabilidades, já faz ela se proteger mais”, diz Ricardo Vasconcelos, infectologista da Faculdade de Medicina da USP e integrante do PrEP Brasil. Ele explica que o trabalho de aconselhamento e as informações que são passadas durante as consultas periódicas exigidas de quem usa o Truvada ajudam no processo de reduzir outras epidemias. “Como essa pessoas são testadas também para outras ISTs, quanto mais pessoas estão em PrEP, mais cedo é possível descobrir outras infecções, tratá-las e quebrar a cadeia de transmissão”, aponta.
Prevenção combinada
A PrEP é apenas uma das opções adotadas pelo Ministério da Saúde, que estabeleceu uma estratégia de prevenção combinada do HIV. As intervenções são divididas em três grupos: estruturais, comportamentais e biomédicas.
As intervenções estruturais são voltadas às condições socioculturais que influenciam diretamente a vulnerabilidade de indivíduos ou grupos sociais específicos ao HIV, envolvendo estigma e discriminação. Além da capacitação e formação dos profissionais de saúde, também são desenvolvidas ações de enfrentamento ao racismo, sexismo, LGBTfobia e demais preconceitos; promoção e defesa dos direitos humanos; e campanhas educativas e de conscientização.
As intervenções comportamentais, por outro lado, focam na disseminação da informação e da percepção do risco de exposição ao HIV por meio de incentivos a mudanças de comportamento da pessoa e do grupo social em que ela está inserida. As ações incluem o estímulo ao uso de preservativos e à testagem; aconselhamento sobre ISTs; redução de danos para as pessoas que usam álcool e outras drogas; e adesão às intervenções biomédicas.
As intervenções biomédicas, por sua vez, concentram-se na redução do risco de exposição ao vírus por meio de barreiras físicas e do uso de medicamentos antirretrovirais. No primeiro grupo se enquadra a distribuição de preservativos masculinos e femininos e de gel lubrificante.
O uso de ARV inclui três iniciativas: a Profilaxia Pós-Exposição (PEP); o Tratamento para Todas as Pessoas (TTP); e a PrEP. A PEP consiste no uso de medicação de emergência, em até 72 horas após qualquer situação em que exista risco de contato com o HIV. O medicamento impede a multiplicação e sobrevivência do vírus no organismo. O tratamento dura 28 dias e a pessoa deve ser acompanhada pela equipe de saúde por 90 dias.
Já o TTP baseia-se na universalização do tratamento com ARV para todas as pessoas que vivem com o HIV, antes mesmo de doenças oportunistas se apresentarem. “O tratamento vai beneficiar a pessoa e o coletivo. Estudos mostram que a pessoa que vive com o HIV, se trata e chega à carga viral indetectável – o que hoje pode acontecer em seis meses – tem uma redução de 96% no risco de transmissão”, esclarece Liza Bueno Rosso, coordenadora do Programa Municipal de DST/Aids e Hepatites Virais. Atualmente, 18 mil pessoas que vivem com o HIV em Curitiba estão em tratamento.
Como a PrEP funciona
Tanto a PrEP quanto a PEP utilizam antirretrovirais que já estavam incluídos nos esquemas de tratamento para pessoas soropositivas. No caso da PrEP, o remédio usado é o Truvada, uma combinação de duas substâncias ativas – emtricitabina (FTC) e fumarato de tenofovir desoproxila (TDF) – que impedem a replicação do HIV no organismo.
“Quando uma pessoa tem essas drogas circulando no sangue, se o HIV tentar infectá-la, por exemplo, no momento em que ela tem uma relação sem camisinha, ele não vai conseguir. O vírus pode até infectar uma ou dez células, mas não vai infectar um milhão de células porque não consegue se replicar. E uma ou dez células infectadas o nosso corpo consegue controlar”, explica o infectologista Ricardo Vasconcelos.
O médico aponta que o mais importante é a adesão do usuário ao método escolhido, seja ele qual for – indo da utilização de preservativos aos antirretrovirais. Ou seja, no caso da PrEP, é preciso que a pessoa lide bem com a agenda de tomar o comprimido todo dia, para que a dose da droga no sangue sempre seja o suficiente para combater a infecção.
Uma das maiores vantagens da PrEP em relação a outros métodos de prevenção à infecção pelo HIV é que ela depende exclusivamente do próprio indivíduo. “Existem pessoas que conseguem se proteger usando camisinha, mas existem pessoas que não conseguem, seja porque não podem ou porque não querem”, lembra Vasconcelos. “Essas pessoas acabavam se afastando do sistema de saúde porque iam levar sermão. Agora, podemos mostrar para o paciente todas as estratégias disponíveis e deixar que ele tenha autonomia para escolher o que funciona na vida dele”.
Liza concorda e acrescenta que é necessário combater o estigma e discriminação em relação às práticas sexuais e ao vírus para que a janela de comunicação permaneça aberta. “Não adianta negar uma realidade que é da pessoa. Temos que analisar: dentro da realidade dela, o que a gente pode trabalhar? Quando a gente consegue ter essa empatia, essa aproximação maior com a realidade dessa pessoa, conseguimos ter um sucesso maior”. Desde março, 127 pessoas passaram pela triagem da PrEP no COA de Curitiba. Destas, 70 apresentaram compatibilidade com o método e estão usando o tratamento.
Responsável pela compilação dos boletins epidemiológicos referentes à Aids e ao HIV em Curitiba desde 1986, a infectologista Clea Ribeiro enxerga um futuro otimista. Enquanto no passado o número notificado de pessoas com Aids superava o de pessoas infectadas com o HIV, a partir de 2011 esses índices se invertem.
Na prática, isso é consequência do crescimento no total de pessoas procurando os testes e, fazendo a detecção precoce, o início rápido do tratamento. Assim, os quadros de indivíduos vivendo com o HIV não chegam a evoluir para a Aids. “Em um futuro próximo, a gente vai conseguir ter uma epidemia controlada e a pessoa vivendo com HIV com qualidade de vida semelhante a quem não tem o HIV”, prevê a médica.
Fonte: Gazeta do Povo