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Eles vieram ao mundo em uma época onde ter o vírus HIV era uma sentença de morte e muitos deles foram criados em abrigos como crianças que iriam morrer. E na manhã deste sábado, 22, vindos de várias cidades brasileiras, eles se reuniram no 1º Seminário Regional de Transmissão Vertical e Infecção de HIV na Adolescência, em São Paulo, para falar de planos futuros, maternidade e demandas que essa população reivindica junto ao poder público.
“Eu penso o HIV como uma experiência dolorosa. É uma experiência de viver nesse corpo com HIV, de se conformar com esse corpo, com os preconceitos que a gente vive. Nosso corpo carrega as metáforas negativas, as imagens negativas que existem sobre o HIV. Isto é objetificar o corpo e não entender aquele corpo como um corpo de subjetividade”, desabafou a estudante Luana Peixoto, do Rio de Janeiro.
Ela contou que os jovens que vivem com o vírus enfrentam isto diariamente nos atendimentos, nos postos públicos. “Eles olham para a nossa cara, anotam e a gente é só aquilo: um bloco de anotações, um objeto de estudo. E a gente está cansada, a gente quer humanidade no tratamento.”
Luana não tem adesão ao tratamento e acha horrível ter que engolir os comprimidos. “Assim como o HIV carrega as metáforas, o comprimido também carrega as metáforas e as imagens de um corpo doente. Quando você engole o comprimido, é como se você estivesse engolindo aquela doença também.”
Outra jovem ativista, infectada por transmissão vertical e que preferiu não se identificar, disse que aderiu ao tratamento quando resolveu ser mãe. “Não foi fácil, por todas as marcas que isso carrega, marcas físicas também, efeitos colaterais. Hoje temos quatro crianças, a gente cresceu, tem nossa família.”
Mas o processo não foi nada simples. “Quando expus minha vontade de ser mãe pra minha pediatra, foi um choque. Chamaram toda a equipe médica e não sabiam o que fazer comigo, como se isso não fosse um direito.”
Naquela época a mãe dela tinha muita resistência à medicação e passou isso pra ela também. “A gente convivia com a doença, mas fingia que não existia. Não tomar a medicação era uma forma de a gente bloquear aquilo. Até ter que aparecer na consulta e lembrar. Vivi muitos anos achando que ia morrer no ano seguinte. Achei que não fosse chegar à idade que estou hoje e ser mãe.”
Quando a mãe faleceu, Micaela Cyrino – artista plástica e uma das idealizadoras do evento – foi morar com o irmão em um abrigo para crianças com HIV. Ela tinha seis anos e ele seis meses de idade. “O cenário era aquele do início da epidemia, de toda semana morrer alguém. Era uma coisa muito dolorosa e a gente criança tentando entender esse processo, tendo dificuldade de tomar o remédio. A gente não podia se cansar, se estressar, a gente ganhava presentes, fazia passeios. Era uma estrutura para crianças que iam morrer.”
No entanto, muitas dessas crianças sobreviveram, completaram dezoito anos e tiveram que deixar os abrigos onde cresceram. “Existe uma responsabilidade muito grande com a qual o Estado e nenhum órgão arcaram que foi a longevidade dessas vidas. Muitos nem terminaram o ensino fundamental, o ensino médio. Como uma pessoa sai de um abrigo e vai encarar uma sociedade que nunca acolheu nem considerou a existência dela?”, questiona a ativista.
Outra experiência dolorosa levantada durante a conversa é a transição desses jovens do ambulatório pediátrico para o de adultos. Enquanto crianças, eles são acolhidos por profissionais atenciosos e cuidadosos. Quando adultos, segundo eles, o atendimento se resume apenas a receber os remédios e ter a recomendação de tomá-los.
“Quais são as opções se a gente não tem adesão? O tratamento não é o principal se a gente não tem saúde mental, não tem o que comer, onde dormir. É toda essa estrutura que danifica a gente mesmo”, conclui Micaela.
O seminário é uma realização da Rede São Paulo Positivo, foi financiado pelo CRT e acontece em parceria com a Rede Latino Americana e Caribenha de Adolescentes e Jovens Vivendo com HIV/Aids (J+LAC), Rede Nacional de Adolescentes e Jovens Vivendo com HIV/aids (RNAJVHA), Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas (MNCP), Fundação Poder Jovem, Coletivo Amem, Grupo de Incentivo à Vida (GIV) e Associação Civil Anima.
Mauricio Barreira (mauricio@agenciaaids.com.br)
Fonte: Agência Aids